Ora viva, amigos.
Hoje decidi criar uma publicação especial, para variar um pouco nos conteúdos do blogue. Com isto, pretendo dar um relance histórico à temática sobre a qual nos debruçamos por cá. Tenho vindo a pensar nesta tema há já algum tempo e tive que me munir de diversas informações para dar corpo a esta publicação. Não pretendo, todavia, torná-la demasiadamente extensa e exaustiva, uma vez que desejo que seja um breve vislumbre histórico adaptado a uma mensagem de blogue. Isto surge também pelo facto de não existirem muitas informações concretas sobre determinadas temáticas abordadas, ao que se abrirá algum espaço para a especulação - o que, apesar de imaginativo, não perde o seu valor historicista.
Recentemente, veio-me à cabeça a seguinte questão: Qual foi o primeiro anime violento alguma vez criado? Esta questão é difícil de se responder de imediato. Mas para tentarmos respondê-la, ser-nos-à também necessário que tenhamos outras questões em consideração, que nos ajudarão a ir ao encontro daquilo que pretendemos, conclusivamente, responder. Optei também por me desviar, progressivamente, desta questão inicial, por forma a poder expandir o conteúdo abordável nesta publicação e torná-la mais rica com um maior volume de informações sobre assuntos distintos, mas complementares entre si. Também criei uns tópicos no site MyAnimeList, com o interesse de conhecer as perspetivas de outros utilizadores sobre esta temática e, inclusivamente, para me ajudarem neste projeto. Primeiramente, podemos começar por quebrar esta pergunta inicial em três outras questões orientadoras:
-Quais os primeiros animes a apresentar cenas de violência explícita?
-Qual o primeiro anime a normalizar cenas violentas e sangrentas?
-Qual o primeiro anime violento a ter um grande sucesso comercial?
Como puderam reparar, somente a primeira questão está redigida no plural. Isto acontece porque nos é difícil apurar, com toda a certeza, qual foi o anime que pavimentou o caminho para a apresentação de cenas violentas na animação japonesa. Até porque, nestes casos, tratam-se de diversos elementos que possuem características em comum, mas que ainda não estão definitivamente soldadas e que serão melhor conjugadas por obras mais tardias. Ou poderão ser casos de produções artísticas pouco conhecidas, com uma exígua representatividade, mas que, por razões de temporização, calharam ser criadas primeiramente que outras (ainda que não tenham surtido grande influência no fenómeno, no seu todo).
Poderíamos ficar aqui o dia inteiro a formular hipóteses acerca disto. Mas o que importa ter em conta é que nenhum fenómeno em pleno alvorecer surge a partir de fatores isolados. Todos, ou, pelo menos, uma grande parte desses fatores conjugam-se entre si para conferir uma base consistente a esse fenómeno, permitindo-lhe que dê um impulso para a sua eventual ascensão. E no caso de produções artísticas, também há que ter em conta outros fatores externos à arte em si mesma, mas que são instrumentais para o seu desenvolvimento - as circunstâncias políticas, económicas, sociais e mentais do período em que se desenvolve.
Alguns de vós certamente conhecerão alguns dos meus outros blogues, já finados, mas de temática ligada à música. Ora, alguns géneros musicais, como o rock, o heavy metal e o hip hop não surgem de acordo com uma lógica criacionista de que nasceram conforme atualmente os conhecemos. É completamente debatível apontar qual foi o primeiro artista de rock no mundo. Se foi Bill Haley, Chuck Berry ou Elvis Presley. Mas a verdade é que todos tiveram um contributo inegável na consolidação desse estilo de música, o que foi potenciado pela existência de grandes editoras, novos e mais sofisticados instrumentos musicais, novos formatos de lançamento de música (o LP) e o desabrochar de uma juventude rebelde, irreverente e inconformada com as conjunturas políticas e sociais no Ocidente.
Isto vale tanto para os animes violentos, como para animes de qualquer outra temática. Ainda que aqueles primeiros sejam os que mais nos interessam no momento, inevitavelmente, iremos tocar na história dos animes na sua globalidade.
Quais os primeiros animes a apresentar cenas de violência explícita?
Começamos já com uma questão complicada. Praticamente todos os animes já vez criados apresentam alguma forma de violência, mesmo que não se trate de conteúdo sanguinolento. Alguns destes animes podem inclusivamente apresentar cenas violentas apenas "porque sim". Isto é algo que iremos verificar mais tardiamente, no alvorecer dos filmes e séries trash dos anos 1980/1990, que, mesmo que o seu enredo não exija ou circunde à volta de cenas violentas, irão ostentá-las, por serem parte de uma produção destinada ao público adulto. Este é o caso de OVAs como Riding Bean ou A.D. Police.
Ao nível da temporização, o mais antigo anime neste blogue é o curto filme de 1917, Saru to Kani no Gassen, que foi catalogado como uma inclusão especial. Apresenta parcas cenas com sangue e mutilação, mas que não sabemos até que ponto foram influentes o suficiente para as subsequentes produções de anime com cenas mais violentas. Algumas produções desta época e outras mais tardias pegavam bastante na temática dos samurais, que, até hoje, se mantém como elementos icónicos da cultura e história japonesa: Namakura Gatana (1917) e Kaumori (1930) são alguns desses exemplos. Acontece que estes filmes eram anteriores à existência da televisão ou da sua comercialização e uso massivo pela população japonesa. Ainda que, no advento da Segunda Guerra Mundial, existissem já alguns filmes de animação japonesa de propaganda destinados às massas, como Momotarou: Umi no Shinpei (1945), baseado no lendário conto japonês, será somente após o fim do conflito armado e no decorrer da americanização do Japão que o anime se desenvolverá conforme o conhecemos atualmente.
Será somente muito mais tarde, no decorrer da década de 1980, que surgirão os animes que poderemos considerar como realmente violentos: Dracula: Sovereign of the Damned (1980), Hokuto no Ken/Fist of the North Star (1984), MD Geist (maio de 1986), Violence Jack (junho de 1986), Roots Search (setembro de 1986), Urotsukidoji (janeiro de 1987) e Devilman (o primeiro OVA, de novembro de 1987), entre muitos outros. Há ainda The Monster of Frankenstein, de 1981, que ainda não se encontra catalogado no blogue.
No entanto, não é bem isto o que pretendemos apurar, de momento. Queremos, antes, identificar outros animes e, eventualmente, mangás, que tivessem servido de potencial inspiração para estas produções supracitadas. Como podem imaginar, esta é uma tarefa complexa e que, provavelmente, não iremos conseguir apurar de forma 100% acurada. Até porque, novamente, não quero que esta publicação de blogue seja demasiadamente longa e exaustiva, mas antes, um breve sumário da história dos animes violentos.
Foi neste contexto que entraram em cena os utilizadores do MyAnimeList. Achei pertinente criar este tópico, no sentido de poder obter o máximo de informação sobre o assunto, pelo que, naturalmente, os respondentes seriam conhecedores desta temática e ajudar-me-iam nesta iniciativa. Obtive algumas respostas bastante interessantes, que irei partilhar convosco, de seguida. No entanto, a maior parte do pessoal confundiu o assunto do tópico, achando que eu lhes tinha perguntado qual o primeiro anime violento que viram e não o primeiro a ser criado.
Um utilizador mencionou a existência de dois animes com "elementos sangrentos" no seu conteúdo: Belladonna of Sadness (1973) e Youkaiden Nekome Kozou (também conhecido como "Cat Eyed Boy", de 1976). Não sendo animes realmente violentos, apresentam, de facto, algumas cenas que poderíamos considerar como sangrentas, mas elaboradas de uma forma ainda muito modesta e mais simbólica que gráfica.
No caso de Youkaiden Nekome Kozou, só me foi possível encontrar uma cena específica, considerável como violenta. Isto acontece porque não consegui encontrar mais episódios do anime sem ser os únicos dois que foram publicados no Youtube. Facilmente, irão reparar que Youkaiden é animado de uma forma muito pouco convencional: as personagens movimentam-se como peças de marioneta, num cenário do mundo real, com filmagens de florestas e ambientes terrosos. Daí que seja realmente original a forma em como a equipa de produção decidiu incluir cenas sangrentas nesse anime. Na animação em baixo, verão que, quando aquela figura macabra é atacada e desaparece, um líquido vermelho é lançado para uma tela em branco. De seguida, aparece uma senhora idosa, visualmente semelhante à criatura que foi atacada na cena anterior, a segurar num recipiente com um líquido vermelho no interior, estando ela situada num cenário disforme. Evidentemente, este líquido emula o sangue e representa a morte de uma personagem (ou um ataque bastante violento contra esta). Novamente, é uma cena que representa a violência e uma possível morte, elaborada de uma forma figurativa e não literal.
Relativamente a Belladonna of Sadness, as cenas mais violentas são contextualizadas com uma lógica similar à de Youkaiden, na medida em que são metafóricas, imbuídas de um significado simbólico específico e não representam violência física efetiva. Logo no início, há uma cena em que Jeanne, a protagonista, tem o seu corpo rasgado ao meio, a partir da zona púbica. Esta cena não significa um dilaceramento, mas sim algo que deverá ser tomado em consideração de acordo com o contexto da história. Imediatamente antes disso, Jeanne estava para casar com o seu amado aldeão, Jean, numa cerimónia que fora anunciada no palácio do Barão e requeria a sua aprovação. Uma vez que a taxa paga por Jean para poder contrair matrimónio era demasiado baixa, ele foi barrado de se poder casar com Jeanne e fora expulso do palácio. Jeanne, sentimentalmente destroçada, é posteriormente feita vítima sexual do Barão. O dilaceramento do seu corpo despido, a partir da zona púbica simboliza não só o seu estado sentimental destroçado, mas também um ato perverso, que simula o coito, na medida em que o ato sexual corrompe a pureza e dignidade de Jeanne, através da penetração do seu corpo, a partir da vagina.
Nesta última imagem, vemos um morcego vermelho. Esta é a figura que aparece no momento em que o corpo de Jeanne é dilacerado, simulando o sangue que jorra do seu corpo, o qual se converte em bandos de morcegos que invadem a tela e pairam em torno da protagonista. Como todos sabemos, o morcego é uma criatura com uma conotação relativamente negativa, sendo um animal notívago, sombrio e até mesmo perigoso, que se alimenta do sangue das suas presas - ou seja, da sua fonte de vitalidade. Poderemos especular que estes morcegos simbolizam a perda da força vital de Jeanne, por ter sido forçosamente separada do seu amado e condenada a ser vítima de indivíduos bárbaros que não se interessam pelo seu bem-estar. Atenção que tudo isto é pura e simplesmente especulação da minha parte, uma vez que estas cenas e o anime, na sua totalidade, são de um cariz bastante enigmático, que abre grandes margens para teorizações.
Um outro utilizador mencionou a existência de um anime, ainda mais antigo que estes dois de cima, conhecido como Kurenai Sanshirou ou Judo Boy, de 1969. Logo nos momentos iniciais do primeiro episódio, ocorrem breves cenas com algum nível de violência, com ataques que provocam sangramentos. Inclusivamente, no momento em que o pai do protagonista golpeia o adversário na cabeça, fá-lo com tanta força que o olho de vidro deste salta da órbita.
Mais tarde, entre maio de 1980 e janeiro de 1981, será lançado Densetsu Kyojin Ideon, um anime de mecha com singelas cenas violentas, mas que nunca extrapolam para a carnificina, conforme poderão ver em baixo:
Com tudo isto, podemos, para já, compreender três coisas:
*Todos os animes supracitados (à exceção do Belladonna of Sadness) são séries televisivas;
*As cenas mais violentas desses animes não são extremas. Isto é, não são cenas sanguinárias e passíveis de ferir suscetibilidades, conforme veio a ocorrer com animes mais tardios;
*Alternativamente, estas mesmas cenas são imbuídas de uma carga metafórica, com um simbolismo próprio, que representam a morte ou a mutilação dos corpos de formas não-literais.
Ademais, estes animes são catalogados com uma restrição de idades muito leve, no MyAnimeList. Densetsu Kyojin Ideon e Kurenai Sanshirou são recomendados para jovens de, aproximadamente, 13 anos de idade, enquanto que Youkaiden é avaliado com uma classificação de conteúdo de "G", ou seja, recomendado para todas as idades.
Inclusivamente as mais icónicas criações iniciais do mestre do horror, Go Nagai, Devilman (1972-1973) e Mazinger Z (1972-1974), são catalogadas como PG-13 (Devilman já não está mais categorizado dessa maneira no MAL, mas, há uns anos atrás, estava, e por algum motivo seria). Belladonna of Sadness tem uma classificação de "R+", ou seja, para uma audiência maior de dezoito anos, não tanto pelas cenas violentas, mas pela representação de nudez física. O que faz diferir este último dos anteriores animes é o facto de ser um filme. Além do facto de que as animações de Go Nagai não são totalmente fiéis ao conteúdo adaptado do respetivo mangá.
Isto leva-nos a novas conclusões em relação à apresentação de conteúdo gráfico para as audiências, o qual era muito mais libertário em filmes e mangás do que em séries televisivas. O conteúdo dos mangás não era adaptado, na sua totalidade, para animes destinados à sua emissão na televisão, devido ao facto de que os autores desfrutam de uma maior liberdade para os produzir, com toda a sua violência e imagética chocante, comparativamente aos animes, em que as cenas mais agressivas tinham de ser removidas ou apaziguadas. Foi neste contexto que surgiram alternativas à representação de violência agressiva, no caso dos animes destinados à televisão, mas sem nunca se rasurar o conteúdo que dava vida ou sugeria essas cenas. Por exemplo, no caso de Mazinger Z, Go Nagai optou por fazer os robôs/mechas derramar petróleo, como forma de emular um sangramento. Em contraste à série animada, que é bastante inofensiva, o mangá de Mazinger Z apresenta cenas bem mais fortes, conforme poderemos ver na imagem abaixo:
Como poderão imaginar, Go Nagai não estava sozinho nesta representação do terror nos mangás, sob forma de carnificina. Outros mangakas seus contemporâneos, como Suehiro Maruo e Katsuhiro Otomo já produziam mangá com ilustrações explicitamente violentas, grotescas, de um elevado nível de detalhe gráfico, conjugados com uma imagética bizarra e perturbadora. Como tal, a maior parte das suas produções não chegou a ser adaptada para anime, salvo algumas pontuais exceções, como Shoujo Tsubaki, de Maruo, que veio a ser adaptado para o filme Midori Shoujo Tsubaki, de 1991.
Estas conclusões conduzem-nos, diretamente, às duas últimas questões acima assinalada e já irão ver de que forma elas serão respondidas e complementadas. Relembrando:
-Qual o primeiro anime a normalizar cenas violentas e sangrentas?
-Qual o primeiro anime violento a ter um grande sucesso comercial?
Bom, conforme já vimos acima, as séries televisivas não constituíam uma adaptação fiel das produções de mangá dos seus autores. Mas, no que toca aos filmes, a situação é diferente. Como todos sabem, os filmes emitidos nos cinemas são também sujeitos a uma classificação de conteúdo específica, orientada para uma audiência dotada de uma maior liberdade e autonomia de decisão, comparativamente ao que ocorre com as audiências públicas a que a televisão se destina. Daí que, não só o Midori de Maruo teve a oportunidade de ser exibido, inicialmente, sem censura, numa sala de cinema, assim como uma parte dos mais antigos e famosos animes violentos, alguns dos quais levaram o anime às grandes audiências e constituíram o surgimento de um novo mercado de animação japonesa destinada ao público adulto. Destacam-se, neste âmbito, filmes como Urotsukidoji, Dracula, Hadashi no Gen, Akira e Wicked City. Como tal, também os produtores de cinema desfrutavam de alguma liberdade para produzirem animação com conteúdos mais adultos.
Pelo menos, dois destes filmes tiveram um considerável sucesso nas salas de cinema, não só no Japão, como no resto do mundo: Urotsukidoji e Akira.
No caso da saga Urotsukidoji, mesmo no Japão, houve a necessidade de censurar algum do material mais explícito, embora a censura tivesse sido mais rigorosa na Austrália, Reino Unido e no Brasil, tendo sido transmitido várias vezes pela Rede Bandeirantes no Cine Band Privê. Uma versão censurada também passou cá em Portugal, tendo sido distribuída pela editora videográfica Prisvídeo, em 1997. Todavia, o anime é, ainda atualmente, considerado como um clássico de culto e notabilizado, não só pelo seu conteúdo violento, como também sexual, sendo um dos animes hentai mais aclamados e bem conhecidos de todos os tempos
Akira, por sua vez, assumiu uma preponderância bastante superior à de Urotsukidoji. O seu sucesso ficou conhecido não só no Japão, como também em redor do globo, principalmente na Europa e na América. Ainda atualmente, é considerado como um dos melhores e mais importantes filmes de animação adulta de todos os tempos, demarcado pela sua violência, linguagem explícita e cenas de nudez física, reiterando, a uma audiência mundial, que "a animação não era só para crianças". Para terem uma noção do seu sucesso, Akira foi o filme de anime mais caro do seu tempo, com um custo de produção equivalente a 700 milhões de ienes e tendo sido amplamente distribuído nas salas de cinema globais e em formatos físicos, como em cassetes VHS. A proeminência de Akira tornou o anime num fenómeno global, que cimentou o caminho para o sucesso comercial mundial de séries de animação japonesa, como Dragon Ball, Naruto, Pokémon e até mesmo Cowboy Bepop. Posto isto, poderemos aferir que, apesar de Akira não ter sido o primeiro anime com conteúdo violento, foi, quase definitivamente, o primeiro anime violento a ter sucesso internacional e, presumivelmente, a normalizar a criação de animes com cenas mais agressivas no seu conteúdo, tanto para os mais jovens, como no âmbito da produção de animação japonesa destinada ao público adulto.
De resto, os animes mais violentos das décadas de 1980-1990, como Violence Jack, Devilman, Genocyber, MD Geist, Baoh, Iczer-1, Hell Target ou Cyber City Oedo 808, receberam uma adaptação mais fiel aos respetivos mangás (se aplicável), revelando cenas de violência brutal e extremamente grotesca, foram lançados em formato OVA. Para quem não sabe, OVA é acrónimo para "Original Video Animation", ou seja, animes que não foram emitidos previamente na televisão, tendo sido diretamente lançados para os mercados de vídeo, como por exemplo, através de DVDs, conforme era o hábito na época. A violência extrema que estes animes ostentam constituía um entrave significativo ao seu lançamento na televisão, assim como o facto de serem animes com relativamente poucos episódios, de longa duração e com cenas sexuais à mistura. Tudo isto tornava estes animes proibitivos, pelo que só poderiam ser assistidos por quem os adquirisse fisicamente, factor este que contribuiu para que se convertessem em clássicos de culto, por um nicho de fãs de anime/mangá.
No segundo episódio de Genocyber, três crianças são brutalmente assassinadas com disparos de um helicóptero de guerra. Em Violence Jack, algumas das cenas violentas são acompanhadas com elementos sexuais (constituindo aquilo que se denomina de "eroguro"), como longas cenas de violação. No segundo OVA de Devilman, a antagonista aparece completamente nua, durante a maior parte do episódio.
Ainda assim, alguns destes animes chegaram a ser transmitidos na televisão, conforme ocorreu com MD Geist e Genocyber, no pacote US Mangá da extinta Rede Manchete, no Brasil. Ambos foram submetidos a um processo de revisão aparentemente pouco rigoroso, que desembocou na censura de algumas das cenas mais impróprias destes animes (o que, no entanto, corresponde à quase totalidade dos seus episódios) e à sua subsequente transmissão televisiva. A verdade é que, mesmo assim, ambos, especialmente Genocyber, continuaram bastante violentos e tornaram-se particularmente conhecidos por causa disso.
Há, no entanto, umas parcas exceções de animes violentos que, apesar do seu conteúdo, chegaram a ser transmitidos na televisão, em formato de séries. Exemplos disso são Hokuto no Ken e Ginga Nagareboshi Gin. O primeiro, mais conhecido e relativamente mais violento, chegou inclusivamente aos canais de televisão na Austrália e no Reino Unido e, por ter sido inicialmente emitido em 1984, poderá ser considerado como um dos primeiros animes violentos a ser criados e também, de certa forma, a normalizar esse tipo de conteúdo em animação japonesa, mesmo fora do Japão, apesar de não ter tido um impacto tão significativo como Akira. Quanto a Ginga, as cenas mais sangrentas e agressivas deste anime ocorrem mais à medida que nos aproximamos dos últimos episódios. Acresce, ainda, o facto de que as mortes violentas ocorrem entre animais, nomeadamente, cães e ursos, e não com humanos, ao que a representação destes últimos a ser decapitados ou desmembrados seria mais proibitiva.
Inevitavelmente, teremos que falar, com alguma brevidade, sobre os animes shounen mais comerciais, que surgem como uma materialização dos empreendimentos efetivados pelos realizadores de animes mais ou menos violentos, dentro dos quais se encontram não só Akira e Hokuto no Ken, mas também Astroboy. Embora não pareça, este último anime também teve a sua dose de controvérsia relativamente ao seu conteúdo. Em um dos episódios originais, aparece uma cena de operação de um cachorro, com vista a torná-lo num cão-ciborgue. No entanto. esta cena foi removida quando o anime foi emitido nos EUA, por ter sido considerada demasiado chocante para as crianças, algo que transtornou Osamu Tezuka, criador de Astroboy, que chamou os ocidentais de "hipócritas". Posto isto, poderemos perceber que as audiências japonesas eram mais tolerantes a cenas violentas na televisão, comparativamente às audiências na Europa e na América - relembremos, a título de exemplo, as ridículas censuras que o canal estadunidense 4Kids fez nos animes que lá transmitiram...
Adiante, vamos ao que nos interessa.
Os animes shounen, bem como alguns shoujo, que nós bem conhecemos e que tiveram a sua explosão a partir do final da década de 1980 assumiram um papel fundamental na popularização de cenas mais violentas e até mesmo com algum conteúdo de cariz sexual leve. É neste contexto que entram em cena animes clássicos como Dragon Ball, One Piece, Naruto, Inuyasha, Samurai X, Bleach, Fushigi Yuugi, Sailor Moon, Cavaleiros do Zodíaco, Soul Eater e Fullmetal Alchemist. São animes com vários episódios, destinados a um público infanto-juvenil e que, ocasionalmente, "abusam" no seu conteúdo, principalmente em momentos de maior adrenalina ou no clímax de um crescendo sentimental e/ou das façanhas realizadas pelas personagens.
Todos nós nos recordamos daquela vez em que Freeza foi dilacerado pelo seu próprio ataque ou quando perfurou o corpo de Kuririn com o seu chifre. Cenas estas que são consideravelmente violentas, mas que surgem, esporadicamente, no anime. Recordo-me de ver, em Bleach e Fullmetal Alchemist, momentos com cenas mais agressivas, de cortes profundos que fazem algumas personagens esvair-se em sangue - tudo isto, em direto na televisão. Naruto é também bem conhecido pelos seus múltiplos Amateratsus e sangramentos bocais.
Ainda assim, há algumas cenas que acabaram por ser censuradas, por serem demasiado pesadas. No Brasil e em outros países latino-americanos, várias cenas d'Os Caveleiros do Zodíaco foram censuradas, por violência e questões religiosas. Em Portugal, Fushigi Yuugi é um exemplo perfeito desse fenómeno. Este anime foi transmitido, há uns largos anos atrás, pelo canal infanto-juvenil Canal Panda. Algumas cenas foram censuradas, nomeadamente, as de conteúdo mais perverso, a nível sexual, assim como outras partes mais violentas, conforme o caso da sangrenta morte de Noriko. O que nos causava alguma confusão, enquanto espetadores, era o facto de alguns episódios acabarem mais cedo que outros e que, no genérico de encerramento, aparecia uma pequena janela a recapitular as cenas do episódio inteiro, a grande velocidade.
Apesar da maior tolerância que existia no Japão perante conteúdos mais violentos em transmissão na televisão, a verdade é que a indústria do anime foi ligeiramente afetada por um evento macabro que ocorreu no país, no final da década de 80. Entre 1988 e 1989, Miyazaki Tsutomo, um ávido adepto de anime e mangá, sequestrou, torturou e assassinou quatro meninas, de idades compreendidas entre os 4 e 7 anos, com quem posteriormente realizou práticas de necrofilia. Os seus atos criminais foram motivo de cobertura mediática no Japão e gerou-se um pânico moral em torno do anime e mangá, os quais foram inocuamente associados à pessoa de Miyazaki, que inclusivamente recebera a alcunha de "Assassino Otaku".
Consequentemente, os animes shounen foram, brevemente, vítimas de novas regulações de conteúdo, que visavam suavizar as suas cenas mais violentas e libidinosas. Poderemos ainda presumir que alguns produtores de animes com conteúdo mais adulto e polémico potencialmente procuraram manter as suas criações mais dissimuladas, por forma a evitar chamar demasiado à atenção, numa época em que esse tipo de conteúdo não seria bem visto pelo público em geral.
Os animes violentos na atualidade
Independentemente disso, a verdade é que os animes violentos superaram estas dificuldades e expandiram-se pelo globo. Apesar de existir alguma censura nas cenas mais impróprias, animes como Gantz, Claymore e Berserk foram transmitidos em redor do mundo ocidental, tendo sido particularmente bem recebidos nos EUA, Reino Unido e Austrália. Outras redes televisivas optaram por transmitir animes mais controversos fora dos horários nobres, mais especificamente, a altas horas da noite conforme ocorreu com Hellsing, no canal estadunidense Encore Action e, em Portugal, com Kurozuka (na SIC K) e Blood+ (no Animax). A maior parte destes animes pertencem ao género seinen, sendo destinados a um público-alvo mais adulto, que exige uma maior maturidade para se conseguir acompanhar e compreender a sua história e também para suportar o conteúdo mais graficamente explícito.
Alguns animes continuaram, contudo, a ser vítimas da censura. Esta é uma situação recorrente com animes mais recentes, como Deadman Wonderland, Tokyo Ghoul, Blood-C e até mesmo em Umineko no Naku Koro Ni, em que as cenas mais sangrentas são tapadas por um irritante borrão de cor branca ou preta. É possível que estes episódios censurados que assistimos no Anitube ou qualquer outra plataforma de reprodução não-oficial sejam herdados dos que transmitem na televisão, ao ripar-se, a partir daqui, a versão censurada. A única maneira de assistir estes animes sem censura será através de meios legais, como pela sua aquisição em formato físico, como em DVD. Simultaneamente, animes violentos mais recentes, como Corpse Party e Hellsing Ultimate não são, geralmente, disponibilizados nestes sites numa versão censurada, uma vez que, como são OVAs, não foram sujeitos a uma emissão prévia em televisão e são diretamente lançados nos mercados de vídeo.
Ultimamente, temos vindo a notar uma ascensão das plataformas de reprodução de séries e filmes através da internet, em detrimento da televisão e do cinema. Esta é uma realidade atual, à qual os produtores de anime não estão alheios e, consequentemente, os animes violentos têm vindo a tirar maior partido desta situação para brilharem com todo o seu esplendor. O triunfo de plataformas de reprodução digitais como o Crunchyroll (que já desfruta de parcerias com empresas de distribuição de anime ocidentais, como a Funimation e a Sentai Filmworks) e a Netflix permitiram que os produtores de anime lançassem as suas criações não só na televisão, mas também diretamente nos mercados de vídeo virtuais, com a vantagem de poderem ser exibidos sem censura. Este é o caso de animes tão recentes quanto Dorohedoro, Jujutsu Kaisen, Gangsta. e Magical Girl Raising Project.
Foi também graças ao advento da internet que uma nova modalidade de anime teve a sua oportunidade de surgir - os chamados ONA (Original Net Animation). Ao contrário dos quatro anteriormente mencionados, estes animes são logo lançados na internet, novamente nos mesmos sites já referidos, conforme o caso de Baki, que fora diretamente disponibilizado na Netflix. A internet surgiu também como um meio propício ao lançamento de animes curtos e experimentais, nos quais se enquadram as produções de autores como Nagao Takena, conforme o caso de Chainsaw Maid e Bloody Date. Takena tem vindo a capitalizar este espaço como depositário das suas criações, desde meados dos anos 2000, através do seu canal pessoal no Youtube.
Atualmente e, presumivelmente, mais que nunca, os animes violentos chegaram ao auge da sua popularidade, no Ocidente. Além do facto destes elementos da cultura japonesa serem já objeto de estudo, presentes em numerosos trabalhos académicos, investigações e nos programas curriculares de determinadas disciplinas em escolas e universidades, são também o foco de interesse de diversas convenções de cariz cultural, conforme o caso do Iberanime ou de expressões artísticas, como o cosplay. Poderia passar aqui muito mais tempo a elencar as múltiplas manifestações que o anime e mangá assumem no nosso dia-a-dia. Mas, ao invés disso, preferia dar conta de um fenómeno que vocês certamente já se aperceberam, que tem a ver com a música.
Desde 2016-2017 que novos estilos musicais têm assumido uma preponderância considerável na cultura da internet e que assumem uma imagética muito ligada à cultura japonesa. São esses os chamados vaporwave e future funk. Estes dois géneros de música eletrónica são frequentemente acompanhados de vídeos com uma estética evocativa de animes clássicos dos anos 80/90, como Sailor Moon, Revolutionary Girl Utena e City Hunter.
Se, por um lado, temos estas canções de uma ambiência reluzente e agradável, por outro, temos uma contraparte mais sombria e gritante, em que campeam estilos musicais como trap e o trap metal. O britânico Scarlxrd é um dos mais ilustres músicos do género, que assume uma imagética altamente inspirada na estética do anime Tokyo Ghoul. Deste modo, verificou-se uma alimentação recíproca entre este género musical e o anime em questão, contribuindo para os popularizar por entre as massas jovens, principalmente entre as subculturas denominadas de "alternativas" (entre aspas, pois confesso que desgosto desse termo, apesar de ser o mais elucidativo para o caso). São também estes jovens os principais consumidores de mercadoria de animes como Tokyo Ghoul e Neon Genesis Evangelion, comercializadas em empresas multinacionais de lojas de roupa, com especial destaque para a Bershka, ao que a estética indumentária destes animes e o uso de máscaras similares à do protagonista de TG eram já populares, bem antes do covid. Isto surge, ademais, como uma forma de divulgação destes animes às grandes massas consumidoras e de ampliar, consideravelmente, a sua popularidade.
Num apontamento final, espero que esta publicação tenha sido do vosso agrado e, se algum de vós quiser acrescentar ou questionar alguma coisa, estejam à vontade para fazê-lo nos comentários!
Os tópicos que criei no MyAnimeList:
"Qual foi o anime violento mais antigo já alguma vez criado?" https://myanimelist.net/forum/?topicid=1940380
"Porque é que é tão difícil encontrar alguns animes sem censura?" https://myanimelist.net/forum/?topicid=1948906
Outras fontes de informação consultadas:
Sobre mangás de conteúdo violento, da velha guarda e outros mais recentes: https://dewildesalhab.com/blog/2020/12/20/top-23-most-violent-and-gory-manga-ever-created
Sobre a transmissão de MD Geist e Genocyber na TV Manchete: https://natelinha.uol.com.br/noticias/2016/09/26/em-1996-manchete-exibiu-desenho-mais-violento-da-historia-da-tv-as-18h-102348.php
Sobre Miyazaki Tsutomo e o seu impacto na indústria do anime: http://intersections.anu.edu.au/issue20/mclelland.htm
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